sexta-feira, 27 de junho de 2008

O incendiário

Hoje tentei escrever algo. Não deu muito certo. Sempre procuro
descarregar no papel minhas decepções pessoais. Acho mais sensato e
inofensivo que descarregar o tambor do revólver na cabeça de alvos
fixos. Já pratiquei tiro. “Alivia os nervos e se paga pouco por uma
bala. Menos do que se pagaria em minhocas e manutenção do barco”. As
vezes sigo esses conselhos idiotas. Talvez escrever tenha sido um
deles. Uma vez li escondido o diário de uma namorada. Se aquilo
fosse um espelho, teria realmente pensado em descarregar o tambor do
revólver na minha cabeça nada fixa. Obvio que pedi explicações sobre
aquele monstro que ela descrevia e que por coincidência tinha o
mesmo nome que eu. Ouvi dela que algumas relações são salvas por
putas. Outras por dinheiro. A nossa era salva por um diário. Pois
bem, fiquei com isso na cabeça depois que nos separamos e comecei a
fazer o mesmo. Na verdade nem foi um conselho da parte dela, mas
como meus tiros e minhas pescarias a irritavam, entendi como se
fosse, por ter perdoado minha invasão à sua privacidade. Nunca
pensei em me tornar escritor. Já coleciono algumas coisas escritas,
mas jamais penso em mostrar isso a alguém. Preferia mostrar minhas
vísceras abertas . Pelo menos não teria a possibilidade de me
envergonhar. Se meu corpo tivesse um corte que o deixasse exposto,
certamente estaria morto. A sensação de me imaginar uma peça de
museu dentro de um caixão me envergonha, mas não menos que o
desprazer de ver alguém sentado num banco de praça lendo algo
assinado por mim enquanto seu cachorro se alivia nas árvores. Sem
falar em ter que seguir toda a ordem natural das coisas : ser
descoberto, ser lido, ser esquecido. Se é pra ser extinto, que seja
sem passar por isso. Olho para o papel. Não consegui sair da
primeira linha. Amasso, arremesso e jogo o fósforo aceso para
contemplar a destruição de mais uma frustração. Ordem natural das
coisas. Vou no cofre e pego todos os papeis que guardava. Minha nova
forma de aliviar tensão. E se gasta menos do que com revólveres,
balas, minhocas e varas de pescar. Em todos os papéis também não
havia passado da primeira linha. Desconfiava disso, mas não tinha
certeza. Nunca relia aquilo que achava que escrevia. Apenas escrevia
e empilhava mais uma folha no cofre. E me sentia realmente aliviado.
Pronto para sair e fazer o que deveria ser feito. Então queimei
tudo. Preciso encontrar outra coisa pra fazer agora. Queimar papel
pode ser algo perigoso. Talvez Nero tenha começado assim. Vou
queimar algo podre para que isto possa ser purificado. Foi indo
assim até pensar em Roma. Foi uma idéia brilhante. O problema é que
um incendiário é sempre um louco digno de intervenção psiquiátrica.
E eu sei que não sou louco. Talvez esteja desenvolvendo a aptidão
para ser um grande incendiário, algo que não seria como pescador ou
atirador. Escritor, como já disse, nunca pensei em ser, mas gostava
de escrever. E obviamente, para ser grande se deve primeiramente ser
apaixonado por aquilo que se faz. Profissão : incendiário. Está
resolvido. Posso dormir tranqüilo agora. Acho que amanhã vou à
praia, sei lá.

Um comentário:

@apimentrando- Evila Almeida disse...

Gostei muito.. isso é uma crônica.