segunda-feira, 31 de dezembro de 2007

OVÁRIO LUMINOSO




Os preços estavam promocionais no Supermercado. Por toda parte via-se os avisos. Bem grandes. A música também ajudou a relaxar. Foram dias muito tensos. O remédio fazia já um pouco do seu efeito. Tudo ao mesmo tempo. Esqueci por alguns instantes. Caminhando ( flutuando ) em uma grande esteira, olhando as prateleiras, que jorravam cores nos meus olhos, bem devagar, bem mais rápido, cada vez mais rápido...até desaparecerem por completo no redemoinho de uma cor só. A mais escura de todas.



Com a cabeça dentro de um saco plástico, desses de supermercado, recebia as visitas dos maiores inimigos. Todos numa fila única e organizada. Enquanto acariciavam minha mão, escolhiam algum produto da feira. Tato zero. O saco impedia-me de falar mas conseguia respirar normalmente. Imóvel, assisti ao roubo. Cada um levou uma coisa. Não ficou nada para o jantar. Beijavam minha mão e colocavam algo em baixo do braço. Abriam as carteiras e deixavam cair algum dinheiro que vinha balançando no ar, cambaleando, até ser espetado na pequena estaca, unicornialmente erguida bem no alto da minha testa. Não, não deixava de ser roubo. O sofá restou uma prateleira vazia e reluzente. O reflexo incomodava os olhos. O plástico era um par de óculos de natação grudado na face e nos cabelos.



A sala de espera da clínica era bem fria. Todas as outras mulheres usavam casacos elegantes. Era a única de braços nús. Todas pareciam tranquilas. Um ponto fixo por pessoa. O numero de pessoas maior que o número de pontos fixos. Algumas me olhavam diretamente nos olhos. Sabiam o motivo da minha presença. Comecei a perceber os detalhes do ambiente. Número de pontos fixos maior que o número de pessoas. Do teto caiam gotas de ferrugem sobre as cabeças. Dos cabelos, escorriam para os olhos. Pareciamos chorar lágrimas de sangue. Os espelhos transformavam a sala num corredor infinito. Eu também estava bastante tranquila. Talvez, porque...ou...por...por saber o motivo da presença de todas elas ali naquele labirinto falso cheio de sutilezas.



Acordei com cócegas na vagina. A distância entre as camas era bem pequena. Sob cada cama havia uma cesta de palha com um bebê morto dentro. Corpos magros e as cabeças queimadas. Os rostos tostados, pretos, carbonizados. Cadáveres podres. Olhei pra debaixo da minha cama, por reflexo. O meu bebê parecia dormir. Não estava com a cabeça queimada. Pelo contrário. Estava bem limpo. A enfermeira, vestida num elegante verde-esperança, veio me entregar a conta.
“O teu era bem pequeno. Não tinha rosto. Não podia te encarar.”
Estava nua e sem bolsos mas o dinheiro que tinha na testa batia exatamente com o valor da cobrança.



A mesa estava bem farta. Trocamos o cordial boa noite. Ao lado do prato repousavam os comprimidos. O meu vermelho. O dele azul. Coloquei um pouco de tudo. Estiquei os pés. Trocamos leves carícias. O jantar aconteceu dentro dos padrões da normalidade. Comemos em silêncio. Como de costume. A luz da vela tranquilizava. Deixava a respiração mais leve. Como sempre...