segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

Ovunque



O troco veio grosseiramente errado. 6 pratas mais uma garrafa que valia 2. Nenhuma pressa. O cigarro estava na metade, servia como ampulheta. O retrato do fracasso. Com o queixo no peito analisava as pupilas solitárias nos cantos da camisa. Estavam cegas e separadas por uma língua não borboleta que saia do peito fechado. Onipresentes. Abri a mão, olhei pro dinheiro amassado. Uma moeda e uma cédula. Estava entre dois vendedores. Talvez eu fosse o nariz de toda a cena. Melhor encurtar o tempo. Mesmo quando se tem bastante. Não foi difícil.
“ Desculpe. Quando chega esse horário, ninguém entende mais nada.”
Esvaziei a garrafa. Peguei mais um cigarro com o globo ocular menos corrompido pela catarata.
“ O tempo cancela dívidas ? Te agradaria se inventassem as notas de 8 ?”
Proposital ou não, o sujeito parecia um cachorro atencioso. Escutando. Olhando e escutando. Com a gravata pra fora da boca. Já com o restante da grana no bolso, comecei a lembrar do velho. Devia ficar assim quando ia ouvi-lo. A saliva escorrendo ate cair no prato.
O velho comia bem e de tudo. Nunca soube da originalidade dos seus dentes. Pela idade imaginava que fossem falsos. Porém, um dos caninos era bastante exagerado em relação ao outro. Parecia uma estalactite. Uma dentadura não viria com uma deformidade assim absurda. Coragem pra perguntar também nunca tive. Foda-se. Ele comia e enquanto mastigava ficava me ensinando as coisas. Dava conselhos. Tinha as suas máximas.
“ O meio termo é algo abominável. Confie ou não confie por nada. Jamais pela metade.”
De qual livro poderia vir isso ? Quando o velho não estava comendo estava lendo. Quem sabe por isso ninguém na mesa questionava a fúria do seu apetite. Quando a saúde apertava e ele sabia que a bandeja seguinte traria a própria cabeça, ai sim ele não comia. O veneno do orgulho deixava o apetite adormecido.
“ Não quero agora...por causa da pressão...evito...mas se eu quiser...eu como...”
Era divertido pra mim. Acho que por ser o único não odiado pelo velho. Talvez por limpar o rabo dele. Isso gerava uma certa confiança.
A carta veio pouco antes da sua morte. Foi um segredo nosso. Entregamos somente o pó cinza pro restante da família, que nem meu sangue tinha. Nunca soube como vim parar naquela casa. O papel comemos juntos, rasgado no meio.
“Estimados parentes, estamos enviando no envelope as cinzas da velha, irmã do velho. Sempre foi um seu desejo ir pro mar depois de morta. Para assim permanecer por toda parte. Esqueçam o passado e façam esta caridade. Saudações da América.”
Se existisse uma balança pra esse tipo de coisa, a vaidade pesaria mais que a raiva. Passaram então questionar o velho por essa eterna briga com os familiares do estrangeiro. Só poderia ser culpa dele, já que os outros eram educados e atenciosos por mandar presente. Tempero importado. Coisa fina. Claro que fomos descobertos e depois desse jantar fui proibido de ver o meu cúmplice, palavra usada por eles. Mas naquela noite o velho além de comer mais que o costume cantou. Comia e cantava sem parar. “Para aquele país, mandarei todos para aquele país...por meus 60 anos de prisão...” Também evitou falar de política, algo que sempre fazia. Estava se sentindo bem demais para isso. Ainda conseguiram me meter na cadeia, com os cúmplices da América, palavra minha. Poucos dias. Tudo serve de aprendizado. Ricos preguiçosos que nem o rabo da velha deviam limpar. O do velho eu cuidava.
“Só bebe café amargo quem tem a língua doce”.
Estava do lado de fora do antigo Roxy Bar. Juntando os cacos de algumas lembranças. Fico realmente ausente quando isso acontece. Numa outra dimensão. Quando não penso nisso, fico imaginando todas as obras perdidas e espalhadas pelo mundo. O desconhecido que se esconde por toda parte. Às vezes desperto por alguma necessidade fisiológica. Outras quando dois vendedores começam a discutir. O frio brincava com os ossos. Um me havia passado o troco errado. Se fosse ele o sem razão, desaparecer com o corpo não seria problema. Mas resolvi não me meter.
“A desgraça descobre-se sem ajuda”.
E aquele lugar já era sinônimo de confusão. Melhor evitar as supérfluas. Entrar por aquelas portas de madeira que iam e viam era como entrar num manicômio. A sensação era esta. Sabia disso mesmo sem nunca ter estado em um. Cada um tem sua forma de imaginar o paraíso, o inferno, e o deposito de loucos vinha no desenho rabiscado no formato saloom. De qualquer forma, nada muito diferente da prisão.
O balcão estava vago e ainda nenhum sinal dos irmãos Bolivar. Menos mal. Ali não se podia sorrir. Pelo menos nos primeiros contatos. Era visto como uma fraqueza de personalidade e um direto entendimento à covardia. Podia-se fumar no Roxy, embora houvesse um grosso cartaz com os dizeres : FUMO FORA NÃO POR RESPEITO AOS NÃO FUMADORES, MAS PARA NÃO OUVI-LOS.
O gentil aviso foi colocado em homenagem à legendária pancadaria iniciada pelos irmãos Bolivar. O trio, gerado pelo ventre da mesma vagabunda, havia terminado de soltar fumaça e logo que entrou foi saudado por sorrisos e cumprimentos de uma meia dúzia de forasteiros. Algo como: grandes cavalheiros, senhores que respeitam os que optam pelo não ao tabagismo.
Confesso que fumei o meu cigarro do lado de fora por uma questão pessoal. Existem duas coisas que gosto de fazer ao ar livre. Fumar e mijar.
Mas que noite foi aquela noite. Só de pensar lembro seis maxilares fraturados e sinto os ossos partidos.
Sentei ao lado de Hannah Molares. O que se dizia era que ela sabia chupar muito bem. Talvez porque todos os seus dentes eram falsos, exceto os molares. Com ela eu tinha certeza, mesmo sem nunca a ter perguntado. Sabia também como ela havia perdido os dentes, mas não poderia perder a concentração naquele momento pensando em bobagens. Precisava estar atento. No entra e sai. No vai-e-vem daquela porta.

Um comentário:

Rodrigo Fernandes disse...

Caralho, que porra, mermão.